quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O retorno à vida feita à mão, a cura dos instintos feridos


Leia o texto anterior - Sapatinhos Vermelhos


Na história, sabemos que a menina perde os sapatos vermelhos criados por ela mesma, aqueles que a faziam se sentir rica ao seu próprio modo. Ela era pobre, porém criativa. Estava encontrando seu jeito de ser. Havia passado da condição de não ter sapato nenhum à de ter sapatos que lhe proporcionavam um sentido de força espiritual apesar das dificuldades da sua vida concreta. Os sapatinhos feitos à mão são símbolos da sua ascensão de uma existência psíquica insignificante para uma vida emotiva projetada por ela mesma. Seus sapatos representam um passo enorme e literal no sentido da integração da sua engenhosa natureza feminina na rotina do seu dia-a-dia. Não importa que sua vida seja imperfeita. Ela tem sua alegria. Ela irá evoluir.O símbolo dos sapatos pode ser interpretado como uma metáfora psicológica. Eles protegem e defendem o que é a nossa base — os nossos pés. No simbolismo dos arquétipos, os pés representam mobilidade e liberdade. Nesse sentido, ter sapatos para cobrir os pés é ter convicção nas nossas crenças e ter os meios necessários para segui-las. Sem sapatos psíquicos, a mulher é incapaz de transpor ambientes subjetivos ou objetivos que exijam perspicácia, bom senso, cautela e firmeza.


O projeto psicológico para voltar ao nosso self de direito é o seguinte: tenha extrema prudência e cuidado no sentido de se soltar aos poucos na selva, instalando uma estrutura ética ou de proteção com a qual você tenha acesso a meios para medir se há um excesso de alguma coisa. (Geralmente você já é bastante sensível para detectar quando há falta de alguma coisa.)
Portanto, a volta à psique livre e selvagem deve ser empreendida com ousadia, mas também com ponderação. Em psicanálise, gostamos de dizer que, para que alguém possa realmente ajudar/promover curas, é tão importante aprender o que não fazer quanto o que fazer. A volta ao estado selvagem depois do cativeiro exige as mesmas precauções. Examinemos esse movimento mais de perto:


As armadilhas, arapucas e iscas envenenadas deixadas para a mulher selvagem são específicas à sua cultura. Relacionei aqui algumas que são comuns à maioria das culturas. Mulheres com formações religiosas e étnicas diversas terão outros insights específicos. O que estamos compondo é um mapa da floresta que habitamos, onde moram os predadores e qual é seu modus operandi. Diz-se que uma única loba conhece cada criatura do seu território num raio de quilômetros. É esse conhecimento que lhe permite viver com a maior liberdade possível.
A recuperação do instinto perdido e a cura do instinto ferido estão realmente ao nosso alcance, pois tudo volta quando a mulher presta mais atenção, ouvindo, olhando e pressentindo o mundo ao seu redor e, depois, agindo como vê os outros agindo, com competência, eficácia e dedicação. A oportunidade de observar outros que tenham instintos intactos é vital para esse resgate. Com o tempo, a observação, a atenção e o comportamento integrado transformam-se num modelo de ritmo próprio, um ritmo que se pratica até que ele seja reaprendido e volte a se tornar automático.

Se a nossa natureza selvagem foi ferida por alguma coisa, nós nos recusamos a nos deitar para morrer. Nós nos recusamos a trivializar esse ferimento. Invocamos os nossos instintos e fazemos o que tem de ser feito. A Mulher Selvagem é, por natureza, veemente e talentosa. No entanto, por ter sido separada dos seus instintos, ela é também ingênua, acostumada à violência, adaptável a ficar isolada tanto do pai quanto da mãe. Os amantes, as drogas, a bebida, o dinheiro, a fama e o poder não têm como abrandar os danos sofridos. No entanto, uma volta gradativa à vida instintiva tem condição de fazer isso. Para tal, a mulher precisa de uma mãe, uma mãe selvagem "boa o suficiente". E adivinhem quem está esperando para ser essa mãe? A Mulher Selvagem gostaria de saber o que está fazendo com que você demore tanto para chegar até ela, para realmente estar com ela, não apenas de vez em quando, mas com regularidade =).

Uma mulher braba é aquela que está querendo voltar para sua vida selvagem inata, não pode se dar o luxo de ser ingênua. Por estar voltando à sua vida inata, ela deve considerar os excessos com um olhar cético e ficar alerta para os custos que eles representam para a alma, a psique e o instinto. Como os filhotes de lobo, vamos decorar as armadilhas, como são feitas e de que modo são armadas. É dessa forma que permanecemos livres. Mesmo assim, os instintos não recuam sem deixar ecos e rastros de sentimento, que podemos seguir para resgatá-los. Embora uma mulher possa estar presa às garras de veludo da propriedade e das restrições, quer ela esteja a um passo da destruição decorrente dos excessos, quer tenha apenas começado a mergulhar neles, ela ainda assim ouve os sussurros do deus selvagem no seu sangue. Mesmo nas piores circunstâncias, como as descritas na história dos sapatinhos vermelhos, até os instintos mais prejudicados podem ser curados.

Para corrigir tudo isso, vamos ressuscitar a Mulher Selvagem na nossa natureza inúmeras vezes, sempre que o pêndulo estiver muito inclinado numa direção ou na outra. Vamos saber quando há motivos para preocupação, pois em geral o equilíbrio amplia a nossa vida enquanto o desequilíbrio a limita. Uma das coisas mais importantes que podemos fazer é compreender a vida, toda a vida, como um corpo vivo em si, provido de respiração, de renovação de células, mudança de pele e resíduos. Seria tolice se imaginássemos que o nosso corpo não tivesse resíduos mais de uma vez a cada cinco anos. Seria um absurdo pensar que, só porque comemos ontem, não deveríamos ter fome hoje. Trata-se de um disparate idêntico imaginar que, uma vez solucionada uma questão, ela permanece resolvida; que, depois que aprendemos algo, continuamos conscientes disso para todo o sempre. Não, a vida é um imenso organismo que cresce e diminui em áreas diferentes, com ritmos diferentes. Quando somos como o corpo, dedicando-nos ao crescimento, atravessando as piores situações, apenas respirando
ou descansando, estamos muito vivas, estamos imersas nos ciclos da Mulher Selvagem. Se pudéssemos perceber que a tarefa consiste em continuar trabalhando, seríamos muito mais brabas e muito mais pacíficas.

Conheço alguns escritores que têm este lema colado acima da sua escrivaninha. Conheço uma que o leva dobrado dentro do sapato. É um trecho de um poema de Charles Simic que serve de orientação definitiva para todas nós.

"Quem não sabe uivar não encontrará sua matilha."
Se você quiser reconvocar a Mulher Selvagem, recuse-se a ficar no cativeiro.
Com os instintos aguçados para ter equilíbrio, salte para onde bem entender, uive à vontade, apanhe o que estiver à mão, descubra tudo o que puder, deixe que seus olhos revelem seus sentimentos, examine tudo, veja o que puder ver. Dance usando sapatos vermelhos, mas certifique-se de que eles sejam os que você mesma fez à mão.
Você será uma mulher cheia de vida.

[Texto retirado do livro Mulheres que Correm Com os Lobos de Clarissa Pinkola Estés]

Pra quem tiver curiosidade ou estiver interessada, eu tenho em pdf...é só pedir^^

Um comentário:

Luciana Onofre disse...

Um livro que complementa esta leitura maravilhosa é o da Shinoada Bolem, A deusa de cada mulher...
Outro A mulher no corpo de xamã de Bárbara Tedlock.

:)